"... Governos fazem de tudo para se mostrar incompetentes de gerenciar a água para o seu povo. (...) Tornam-se caixeiros viajantes para vender um bem social, se oferecendo para as empresas."
Sebastião Cerqueira-Neto
Em tempos de globalização as grandes corporações têm diversificado suas atividades, com ramificações por todos os setores da economia. Por isso, no seu livro Geografia Econômica, de 1981, o geógrafo Manuel Correia de Andrade afirmava o quanto seria difícil cartografar certas empresas no território. Por exemplo, uma empresa que fabrica cimento também pode ser dona de grandes canaviais.
De certo que a globalização perversa procura capturar todas as possibilidades de riquezas, inclusive de origem natural para obter lucros. São grandes conglomerados, multinacionais, empresários bilionários, que veem no meio ambiente uma oportunidade de enriquecimento. Veja a privatização da Vale do Rio Doce, que hoje simplesmente é chamada de Vale, subtraindo o Rio Doce do seu nome; isso não é feito de forma ingênua.
Ora! Se tudo que está no subsolo pertence ao Estado, logo pertence ao povo dessa nação. Então, o que justificaria uma privatização desses recursos naturais? Florestas, minérios, rochas viraram produtos nas bolsas de valores. E dentre esses elementos naturais, a água se tornou com certeza um dos recursos naturais mais cobiçados.
A discussão sobre a privatização da água não é algo recente, como acreditam ser alguns moradores de pequenas cidades brasileiras que estão discutindo se suas águas serão gerenciadas por alguma empresa privada. Em Quioto (Japão), no ano de 2003 - talvez seja o Fórum que mais repercutiu mundialmente sobre o escândalo de privatização da água -, vários representantes de movimentos sociais de diversos países participaram desse fórum contrapondo os representantes de grandes empresas e bancos mundiais que viam na água um bem particular, com caráter puramente econômico.
Mas, por que um governo, seja na escala municipal, estadual ou federal, deseja privatizar a água? Há vários motivos. Mas, tentando oferecer uma análise diplomática, vou me ater em um só motivo geralmente justificado pelos governos, que venha a ser a sua debilidade em gerenciar a água para o seu povo.
Os governos estéreis administrativamente vão dizer que não têm condições de expandir água para sua população que cresce através dos bairros que aparecem sem nenhum planejamento. Portanto, temos incompetência no planejamento urbano que vai ser uma justificativa final para a privatização da água. Assim, a população cresce e os governos enxergam na privatização o único caminho de trazer “benefícios” para a sociedade.
Sou um geógrafo, quase um analfabeto em economia. Mas, penso que a gente só poderia vender aquilo que produz. Ou estou errado? Se minha análise tiver alguma coerência, então, quem produz a água? Alguma empresa? Como posso colocar preço naquilo que não produzo?
Pelo pouco que entendo sobre a dinâmica da natureza, a água é um elemento natural, brotada de um lençol freático. Ou numa visão teológica diria que a água é uma oferta divina. Então, quem deu o direito ao município, ao estado, privatizar um elemento natural ou divino?
E por que as empresas estão de olho nesse recurso natural? Simplesmente porque nos dias atuais a água é considerada o ouro azul. Daí a cobiça por ela. As empresas elaboram uma retórica sedutora prometendo oferecer água de melhor qualidade, ampliação da rede etc. Tudo aquilo que qualquer governo poderia fazer, mas, se sente incapaz. Muitas vezes uma incapacidade de conveniência. E os governos fazem de tudo para se mostrar incompetentes de gerenciar a água para o seu povo. Não se envergonham por se passarem por inaptos na governança do seu território. Tornam-se caixeiros viajantes para vender um bem social, se oferecendo para as empresas.
Essa reflexão não tem nenhuma pretensão de fazer apologia contra a privatização. Penso que em muitos casos isso seja um caminho necessário. O que não posso, enquanto geógrafo, humanista, é aceitar que um bem social, que é a água, seja privatizado.
No Fórum Mundial em Quioto, o representante do Banco Mundial, em meio aos grandes protestos contra a privatização da água, disse que teria que se achar um caminho para que os pobres pagassem pela água. Os pobres sequer têm condições para comprar alimentos para sua sobrevivência.
Esse discurso não está explícito nos debates onde as comunidades são chamadas para discutir sobre a privatização da água, mas é o mais profundo desejo das grandes empresas e de políticos que são incapazes de compreender o papel social da água, ou são verdadeiros algozes dos eleitores que os elegeram. Contudo, não há ingenuidade nessa negociação da privatização da água.
Nenhuma empresa que entra no mercado da água cobra pelos serviços de tratamento da água, de expansão da rede, pois, isso não daria o vultoso lucro que elas desejam com a valorização de suas ações nas bolsas de valores. Esse tipo de empresa cobra pela água, e os rios são suas jazidas de ouro: the blue gold.
Sebastião Cerqueira-Neto é professor universitário
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